domingo, 23 de janeiro de 2022

Visceral - Capítulo 3 Do Mar Profundo


 

Um estranho fenômeno assola os japoneses naquela manhã, o sol nasceu e ao invés de suas belezas naturais a baía de Tóquio revelou terra negra e peixes mortos. O que rapidamente atraiu a atenção de todos.

Muitos japoneses se aglomeram receosos, assistindo uma enorme carcaça decomposta. Restos de seres abissais expostos na metrópoles japonesa. 

Na televisão, uma repórter acalma a população:

"A terra preta, assim como os peixes mortos podem indicar eventos sísmicos, porém nossos especialistas garantem que nenhum terremoto ou maremoto ocorreu, tão pouco erupção vulcânica. Acredita-se que se tratem de lixo que chegou a costa".

Yume é uma das pessoas em volta da baía, seu celular toca informando o cancelamento das aulas, os alunos foram estudar os animais marinhos mortos, ou deveriam.

A professora ignora a mensagem e caminha até o colosso decomposto, ela despreza a barricada policial, encostando sua mão no cadáver, enquanto pronuncia um nome inaudível.

Honoka para a caminho do trabalho, também tomada pela curiosidade, ela observa de longe o gigante morto.

- Vão concorrer com nossa descoberta.

Ela vira-se assustada e reconhece Shinnosuke encarando a criatura morta, apesar do gracejo não existe diversão em sua face.

- Você parece preocupado.

- Olhe para o céu.

Ela o faz sem entender, conhecendo seu colega Honoka começa a procurar detalhes: o sol está tímido atrás de nuvens, mas vivo, por falar nelas as nuvens estão normais, mesmo com a poluição o céu está azul.

- Não consigo enxergar nada.

- Exato. Com tantos peixes mortos o céu não deveria estar infestado por gaivotas?

- Gaivotas são as lixeiras do mar. Tem razão, apesar das pessoas a natureza está estranhamente familiar, como se nada tivesse acontecido.

- Faz séculos que o homem deixou de ser um ser natural, com isso não entendemos mais a natureza.

- Dá para parar de falar em enigmas.

- Na natureza a morte também é vida: um animal morre, outro vem e se alimenta dele, seus restos adubam a terra. Aqui não existe possibilidade de vida, apenas morte.

A sucessão de estranhezas continuou, mas sem grande alarde. Uma vez que um evento acontece sua repetição perde os holofotes para algo novo. 

O grande cadáver foi retirado pela marinha, mesmo com a chegada de novos peixes mortos nos próximos dias a baía o evento não chama tanto a atenção. Um grupo ecológico culpou a poluição e todos agradeceram a explicação rápida e simples.

Dessa forma mais uma semana se passou.

O museu se encontra bem diferente, os estudiosos cederam lugar aos marceneiros. Uma réplica de um templo antigo fora erguido na ala de antropologia, tudo para a grande inauguração do monolito.

Gendo acompanha de perto a grande rocha, posta em meio a um espelho d´água, com os painéis de pedra atrás, a múmia fica exposta em um canto, o centro reservado para a tradução ainda não entregue.

- Você consegue ver a beleza, Honoka?

- Aquela múmia trás sérios questionamentos sobre o que o senhor considera belo, mas eu concordo.

Os dois dão risada.

- Aquele espelho d'água foi uma excelente idéia senhor.

- Trata-se de um deus aquático. Os antigos eram bem literais quanto as suas adorações.

- Infelizmente não temos um nome.

- Um deus desconhecido, de nome impronunciável.

- Ainda não é uma certeza.

- Minha querida, descobertas são incertas. Quando o primeiro dinossauro foi descobertos as pessoas imaginavam lagartos gigantes e não grandes aves de rapina.

- O tempo comprovou o erro deles.

- Mas não os recriminou, descobertas também são criações, adivinhações. O importante é sermos honestos.

- Tenho a consciência de que fizemos o nosso melhor.

- Concordo, estou orgulhoso. Sei que nossa divindade também ficaria. Agora vou ensiná-la a outra tarefa que os diretores de um museu precisam dominar em noites de estréia.

- Qual senhor?

- Bajular financiadores e servir canapés.

Nos bastidores Akeno acompanha de perto os últimos detalhes na tábua que contém a tradução dos painéis e do monolito.

"A eleita se encontrará com XXX onde vai viver sua noite de núpcias e adoração a XXX".

- Gente é só uma trepada.

Todos dão risada de sua piada, Shinnosuke dá um passo à frente e limpa a garganta.

- É um pouco mais do que isso, não diminuindo a importância de uma boa trepada, a fertilidade e a sexualidade estão intimamente ligadas, quanto mais primitivo a civilização mais importância se dá ao sexo. Tribos antigas desvirginavam suas donzelas em público, algumas civilizações contavam com um sacerdote específico.

- Um emprego onde um homem desvirginava garotas?

- Muitas vezes com um instrumento sagrado.

- Aonde você quer chegar?

- Sexo é vida, mas também é morte. Na natureza tudo é um ciclo o final de algo é o começo de outro.

Yume se encontra em seu quarto ensandecida de desejo, ela se masturba pela sétima vez naquela manhã, esfregando o travesseiro entre as pernas. Descabelada e suada, morde seus lábios de prazer.

De volta ao museu, Shinnosuke continua sua explicação.

- Imagine que a escolhida é a encarregada de construir uma nova hera, ela vai carregar a semente de um deus. Você pode imaginar o poder envolto nessa ideia.

- Ela é praticamente uma deusa.

- Antigamente pessoas com poderes de deuses possuíam muitas responsabilidades e um enorme ônus, alguns até considerados intocáveis, certas tribos isolavam seus reis/deuses outros eram impedidos de se mover ou serem vistos. O poder trazia grande sofrimento a essas pessoas.

Em seu apartamento Yume esfrega a vagina contra o batente da porta, em desespero segue até a cozinha, arranca sua roupa, abre a geladeira de onde retira uma garrafa.

De quatro introduz o objeto com força e raiva em sua vagina. Seu corpo responde com prazer a masturbação, mesmo não havendo mais consciência da professora, ainda existe a fisiologia.

No Museu os dois amigos continuam a conversa, agora é a vez da Akeno.

- Ao mesmo tempo que possuíam poder eles não podiam desfrutar?

- O verdadeiro poder vinha do deus protetor ou totêmico representado por um animal ou planta. Considerado intocável. Um dia por ano, sempre no mesmo dia o tabu era quebrado e o animal devorado. 

- Como uma comunhão?

- Como uma comunhão.

 

Naquela noite.

 

O museu está deserto a exceção de seu curador, que avança a passos largos pelos corredores desertos e negros. Uma força antiga e poderosa age sobre ele e o local, inutilizando todos os sistemas de segurança.

Gendo chega ao salão da exposição, onde contempla o monolito, a luz da lua reflete o monolito, destacando os hieróglifos, agora limpos e brilhantes. 

Os olhos do cientista revelam que a razão abandonou seu corpo, com os braços relaxados permitem que o paletó escorregue, em movimentos bruscos arremessa os sapatos. Ele aproxima-se da pedra negra, onde inicia um ritual antigo. 

Dançando e cantando em uma língua não humana Gendo está possuído como um xamã, saltando em êxtase rasga sua roupa. Quando não consegue mais dançar se coloca a gritar, eufórico até que desmaia nu.

O mar da baía de Tóquio fica agitado, ondas encobrem a margem em pedra, transpassam as barreiras de concreto. A estranha terra negra recobre a construção humana; pedaços de seres marinhos mortos são trazidos pela água. 

Em meio às ondas surge uma criatura ancestral que desafia os limites da linguagem humana. O deus evocado no museu está entre nós: com seus dois metros da altura a criatura marinha caminha com facilidade em terra, revelando-se híbrido.

O deus de nome impronunciável ostenta uma cabeça de bagre e boca humanoide, seus olhos aproximam-se aos de um tubarão: negros e sem vida; o longínquo corpo reptiliano trás marcas de um anfíbio: guelras e respiração pulmonar; a longa cauda provavelmente auxilia no serpentear subaquático; longas peles sob os braços assemelham-se a asas demonstrando ser uma criatura bípede, com andar semelhante ao homem de neandertal. Os dentes pontiagudos e as garras robustas e negras revelam tratar-se de um carnívoro.

Os primeiros a verem o antigo deus são aqueles que observavam a tormenta, a simples visão da criatura é suficiente para destruir sua sanidade. Alguns começam a rir, outros a chorar. Os mais dignos se oferecem para saciar a fome milenar da criatura, que não hesita.

Ignorando o crepúsculo da civilização Honoka, Akeno e Shinnosuke comemoram o fim de um longo trabalho em um bar de luxo.

- Faz muito tempo que não saímos os três para beber - Honoka observa saudosista sua imagem no espelho.

- Naquela época nós dois passamos os dias trancados no quarto.

- Não me lembre desses dias, Shinnosuke, parecíamos crianças.

- Foi a melhor época da minha vida.

Honoka fica vermelha, sem palavras bebe mais um gole de seu drinque.

Akeno ri da honestidade de sua amiga e levanta-se com seu copo na mão.

- Aonde você vai?

- Já vi que estou sobrando aqui amiga, além disso tem algo muito mais divertido para fazer além de ouvir dois apaixonados discutindo sobre o remorso do tempo.

Elegante e sensual Akeno caminha até uma mesa, onde um jovem bem apessoado a observava à algum tempo, ela senta-se à mesa dele e rapidamente começam a rir.

- A Akeno é bonita e decidida, ela sabe o que quer e corre atrás - Honoka apresenta um tom triste e semblante arrependido - Ela combina com você.

- Honoka!?

A doutora levanta-se e sai do bar, onde observa a lua cheia, arrependida começa a falar ao homem que a seguiu:

- Você sabe que eu menti quando nos separamos, nunca me apaixonei por outra pessoa.

- Não, eu não sabia.

- Você ficou triste?

- De coração partido, não sabia o que era pior a dor de te perder ou não saber o motivo.

- E mesmo assim veio me ajudar?

- Você pediu minha ajuda.

Ela ri amargurada, uma lágrima escorre.

- Eu sou má, uso as pessoas, finjo ser algo que não sou.

- Honoka - ele tenta aproximar-se, mas é repelido.

- Para trás! Não demonstre compaixão. Eu magoei você, quando precisei o chamei de volta, trabalhando pra mim. Só para me sentir superior.

- Nunca entendi a nossa situação assim.

- Mas foi, você sempre foi um gênio, alguém que poderia ir muito longe e de fato foi. Não é só isso, é alguém bom, seu coração é enorme. Capaz de se entregar aos amigos e a quem ama. Durante a faculdade eu ficava pensando "por que ele está comigo, eu não mereço alguém assim".

- Você não faz ideia da mulher maravilhosa que é.

- Não acredito, a pressão de alguém como eu estar com alguém como você era enorme, eu o segurava, o atrasava nos estudos, não permitia que encontrasse alguém melhor.

- Você é tudo o que eu sempre quis.

- E o medo de quando você finalmente se desse conta e me abandonasse, eu precisei fazer isso. Eu... eu sou horrível.

Shinnosuke segura sua amada, a beijando como há tempos não beijava ninguém, com paixão e amor. Honoka relaxa suas defesas, retribuindo o gesto.

- Por que eu?

- Não sei explicar, eu a amo. Simples assim.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário